quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Dias estranhos


Aquela vida que vivi

Aqueles dias que sempre pareciam iguais

Aqueles dias que pareciam ser eternos

Aquela sensação de familiaridade

Até aquele dia, o mais estranho dos dias

Até que todos os dias se tornaram diferentes

Dias estranhos

A eternidade que deixou de existir

A finitude que se mostra sempre presente

Sempre à espreita

O fim dos dias eternos

A eternidade dos dias finitos

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Primavera

 

Viveu, viveu intensamente, tudo o que a vida podia oferecer

Tomou o último gole, lambeu o prato 

Não passou vontade

Sentia muito, sentia tudo

Viveu 100 anos em 35

É, para sempre, alguém com 35 anos 

Anos virão, passarão, a terra implodirá, os astros vão se movimentar

Mas, para sempre, 35 anos

Relógio parado, estancado naquela hora e lugar, 

Para sempre 35 anos

Para sempre o cheiro, o sorriso, a palavra ecoada na varanda

O som do portão a se abrir

A palavra dita, fixa, sempre a mesma, no ar 

Sempre 35 anos

Sempre nos meus dias, no meu pensamento, 

Sempre na minha finita vida, que não tem a mesma intensidade, o mesmo fervor

Mas que te ama, para sempre, infinitamente

Para sempre 35 anos



- A primavera devolve ao homem uma parte das flores desaparecidas? 

(Nicanor Parra)

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Curvas

É preciso usar as curvas

Do seu corpo

Dos seus cachos

Da sua voz

Da sua força

Nada é plano

             consistente

             igual

Sobe, desce

Melhora, piora

É preciso usar as curvas

Do riso

Sorrir

Não levar tudo tão a sério

Nada é definitivo

Nenhuma dor,

Nenhum amor.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Urgência

Apesar de parecer que somos eternos - afinal, tudo o que temos conhecimento é a vida - o existir. Não sabemos como é a morte ou como é o estado imediato de antes de vir a esse mundo. 

Tudo o que temos e o que somos é o que conhecemos. 

Mas quando você se depara com a morte de alguém amado, é como se nesse exato instante, um relógio desse corda. Você começa a ouvir um tic-tac incessante. 

Durante o dia, o trabalho e a rotina acabam jogando uma neblina e por alguns minutos o relógio parece não mais existir. 

Cai a noite, depois de uma jornada de 10 horas de trabalho, sem ter feito o que você realmente ama, o relógio grita, um som ensurdecedor. Parece que ele girou pelo menos umas 1000 x em um curto espaço de tempo. 

Tic tac. 

O tempo passa, os não-dias se aproximam. 

Quando você sente o gosto amargo da morte, a realidade se torna mais palpável, mais densa. Não há como ser quem você era antes. É um caminho sem volta. 

Viver passa a se tornar uma urgência. Sinto uma urgência em viver, em conhecer, em viajar, em amar. 

Deitar à relva de uma noite estrelada, sentindo cada canto do meu corpo respirar e inspirar. 

Ser una com a terra. 

Urgência em viver. Temos tão pouco tempo. 

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Infinito

As tragédias acontecem sempre de repente, inesperadamente.

(Tudo se torna óbvio depois que a gente fala).

O fato de nossos dias serem parecidos não significa que nada acontece de repente.

A questão é que o banal não marca - os dias tem um sentido de continuidade, de semelhança, de lentidão, de eternidade.

Até a tragédia acontecer. Um rompante. De repente. 

Você até tem a sensação de não pertencer mais nesse tempo. Parece agora um universo paralelo.

Parece que você está vendo tudo de longe, sem entender nada.

O tempo, a continuidade, a eternidade - tudo perde o sentido.

É como desaprender a viver. 

Porque antes era um dia após o outro... sabe? A semelhança dos dias.

Então a tragédia te tira o chão dos pés.

Você até se questiona se um dia conseguirá ver sentido nas coisas...

Porém a roda segue girando, e quando você menos espera, a semelhança dos dias retorna.

A lentidão, a continuidade, a sensação de sermos eternos.

Claro que dessa vez com um gostinho diferente: a sabedoria da finitude.

Toda dia você sente isso na pele, então de fato você reaprende a viver e a sentir.

Sorrisos tem novos significados.

O céu azul, o vento, o sol, as melodias, os passarinhos.

Você os sente de uma maneira diferente.


Fecho meus olhos - sinto o som ao redor, o peso do meu corpo, respiro fundo...

Isso é tudo o que tenho. Esse único momento. Essa única respiração. Isso é ser infinito.

segunda-feira, 27 de maio de 2019

Vazio

Desde que você se foi

Eu me pergunto todos os dias

 - Qual o meu propósito neste mundo passageiro?

Desde que você se foi

O céu azul é novo pra mim - desbotado

O canto dos passarinhos também - desafinou

Desde que você se foi

A vida parece ser outra

Um punhado de gente,

Um tanto de solidão 

Desde que você se foi

Eu me pergunto:

- Por que você se foi?

Qual o sentido de toda essa bagunça? De todo esse caos? 

E se ao invés de trabalhar, estudar, produzir, se formar, pesquisar

Eu estivesse contigo mais tempo

No pouco tempo que te restava e eu nem sabia?

E se eu tivesse te abraçado mais

Como seria?

Como será, daqui pra frente

Agora que você se foi?

sábado, 11 de janeiro de 2014

Metrôs

Roberta está triste. 
Às 18 horas, voltando de um passeio solitário pelas ruas da Cidade Velha, segue seu caminho para casa num metrô. Ela olha a sua volta - a seu lado, na janela, um senhor grisalho, com uma boina marrom e um olhar perdido. Na sua frente, uma jovem loura, com calças rasgadas, maquiagem preta, boca vermelha e nenhum sorriso no rosto. Do outro lado, uma senhora de idade - beira os 70, brigando com seu netinho, que faz caretas e é o único sorrindo no trem - ne t'excite pas! E a criança se acalma por alguns minutos. 
Roberta olha para o lado. Para o outro. Para a frente. Já está no fim do dia e ela não conseguiu conversar com ninguém. Nenhuma pessoa da cidade lhe dirigiu a palavra - "o que há comigo, afinal?" 
Mas no metrô é tão pior. Aqueles seres, tão próximos uns dos outros! Mas nenhuma palavra. Ninguém quer desperdiçar conversas. Quando olhares se encontram, logo os olhos se desviam. Não há coragem suficiente para sustentar a indagação que paira nas pupilas negras. Mas afinal, o que se encontra debaixo da terra, senão gente morta? Roberta nunca gostou de metrôs. A proximidade tão distante em que essas pessoas todas se encontram faz pensar que o amor perdeu. A harmonia, a beleza, a diversão, a curiosidade - estão todas mortas. 
As portas se abrem. E então, ao longe, um violino! Roberta não apenas se consola, como também ama quando a música dos anônimos corta o ar de funeral do metrô - a vida está aqui, afinal. Aqui há gente viva.
E então ela se sente culpada:
- E se eu dissesse ao senhor grisalho ao meu lado: "Que sol bonito fez hoje, não?!"
Talvez ele se encontrasse. Talvez Roberta se encontrasse.

Falta coragem no mundo.
E amor.